Crônica de Domingo – “Comida de Mãe- A Celebração da Vida e do Amor”
Crônica de Domingo – 17 de julho de 2022
Comida de Mãe- A celebração da vida e do amor.
Quantos aromas e quantos sabores guardamos das perfumadas comidas feitas por nossas mães ao longo de nossas vidas?
Desde o primeiro momento em que chegamos a este mundo, cabe a elas o sacerdócio de prover a alimentação de seus filhotes; primeiro com o leite materno e depois com todos os estímulos e artifícios para que, crianças, aprendamos a descoberta desses sabores que irão nos acompanhar pela vida afora.
De quantas lembranças ao redor da mesa de refeições se constroem as nossas memórias de afeto que vestimos como o traje de gala que nos enfeita para a caminhada existencial?
Tinha nove ou dez anos quando um dia Cecília me chamou para junto de si, próximo ao fogão a lenha abastecido com brasas incandescentes de onde saia diariamente as nossas refeições familiares muito simples e saborosas.
A partir de hoje, disse ela, vou te ensinar a cozinhar, porque se eu morrer, você nunca vai depender de ninguém para fazer a sua comida e, na vida, fez questão de frisar, nunca é demais o que a gente aprende.
Didática, ensinou pausadamente as medidas para cozinhar um bom arroz e um suculento feijão, itens básicos para a sobrevivência; Ainda hoje, cada vez que me aproximo do fogão para preparar nossa comida, tenho a sensação de ouvir: “para cada medida de arroz, duas de água e para cada medida de feijão, quatro de água”
Muitos anos depois foi que pude compreender aquela preocupação que me soou tão fora de propósito naqueles dias de infância; Tendo sido ela mesma, órfã de mãe aos oito anos, certamente não queria que eu fosse pego de surpresa caso ela me faltasse sem que ainda fosse capaz de cuidar da própria fome.
Na adolescência, incontáveis foram as vezes em que sem aviso, eu trazia amigos para “filar a bóia” em casa, e lá estava ela, sempre a postos na frente do fogão para operar o milagre inexplicável da multiplicação dos alimentos.
Basta fechar os olhos e as lembranças chegam no cavalo alado das memórias. O bolinho de chuva quentinho acompanhado do fumegante café da tarde; a macarronada e o frango assado em casa nas manhãs de domingo, a polenta cremosa cortada em pedaços e misturada ao leite quente em dias frios, o pão caseiro assado em fornadas para a semana toda e tantos outros aromas que deixaram nossas almas inebriadas de duradoura felicidade.
Quando construímos a sua casa depois de uma vida inteira de pelejas, a única exigência que fizemos foi que a cozinha e a sala de jantar fossem integradas e amplas a ponto de caber todo mundo, irmanados e acolhidos para que ela pudesse cozinhar sem perder ninguém de vista; Foi neste espaço que até os 90 anos, ela cozinhou sozinha para um batalhão de gente, sem permitir que ninguém se apossasse do seu espaço frente ao fogão; Depois, com ajuda das “meninas” da família continuou sua missão até os 100, quando nós, a contra gosto dela, por precaução a tiramos das tarefas diárias, mas esperta que só ,sem que percebêssemos, deu um “jeitinho” de continuar vistoriando o seu “fogão”. Mudou a posição de sua cadeira na mesa das refeições passando para a cabeceira oposta, de forma a ficar desde então de “frente” para quem ocupa a cozinha e principalmente o seu tesouro de onde continuam a sair refeições em profusão; Agora, em vez de servir, ela é servida com mimos e regalias, mas continua “gerenciando” tudo com olhar atento e cuidadoso.
Dia desses, num momento de descontração, soltou um “Meu filho, faz um comida bem gostosa que eu estou com muita fome”. Rimos todos porque a cozinha continua sendo um lugar de leveza e alegrias.
Lembrei que todas as vezes em que vinha visita-la, ao voltar para minha casa, ela fazia questão que eu levasse um farnel de comida para quando chegasse ao meu destino.
Em uma das ultimas vezes em que ela ainda cozinhava, abasteceu com generosidade uma vasilha do arroz delicioso que fazia e ordenou que eu levasse para o retorno; No caminho de volta fui pensando que aquele poderia ser o ultimo arroz que ela havia cozinhado para mim e movido por um sentimento de que eu deveria perpetuar aquele gesto e aquele sabor por tanto tempo quanto ainda houvesse de vida para nós, distribui-o em porções menores e as congelei com uma única ideia:
Se ela se for antes de mim, todas as vezes em que a saudade apertar, irei descongelar uma porção desse arroz feito por ela e misturar ao que farei para a minha refeição, porque assim, integrados, o amor que temperou o arroz feito por ela envolverá aquele feito por mim e eu poderei saborear e reviver os aromas, os afetos e os sabores de uma vida que tem sido desde sempre sinônimo de amor e cuidado.
Hoje, Cecília, cansada de ficar sentada apenas observando, resolveu levantar-se e reassumir o seu posto junto a pia e ao fogão. Ficou feliz feito criança nos cinco minutos em que a deixamos novamente sozinha diante do seu “trono”.
Tenho encontrado às vezes pessoas que diante das dificuldades que deparam- se pelo caminho, questionam onde Deus está.
A esses, eu digo sem temores. Deus está na comida que sua mãe faz para voce todos os dias.
Comida de mãe é o elo eterno da celebração da vida e do amor com que Deus nos contemplou nessa jornada.
Nota da Redação: Cecília, 106 anos, é a mãe do autor desta crônica.
Texto: Dema de Francisco, editor da Revista Ponto Jovem.
Fotos: Cecilia (Arquivo da Família) e Internet