Martha Rocha não mora mais aqui
Martha Rocha não mora mais aqui
No futuro, ao consultar os obituários deste ano, eles indicarão que ela morreu num dia quatro de julho. Eu, porém, me atrevo a dizer que a morte de Martha Rocha começou de forma silenciosa e íntima há quase dois anos quando ela precisou se desfazer da sua casa e ir morar em um abrigo para idosos. Sempre discreta como convém a uma alma nobre, não tornou público seu martírio, nem fez dele um panfleto barato para deleite de curiosos. Com toda certeza engoliu o choro e o sofrimento e seguiu em frente de cabeça em pé, como tantas vezes já havia feito ao longo da vida. Foi uma mulher que sempre teve a consciência de que o seu nome era de domínio público, porém a sua história pessoal era somente sua e essa, ela se dava ao sagrado direito de guardar consigo.
Uma vida é feita de lembranças. Daquelas que através de objetos físicos ou materiais são guardadas, e de outras que são armazenadas no coração. Ao se recolher em apenas um quarto num abrigo para idosos, Martha tinha a noção de que era forçada a se desfazer de lembranças e pertences que lhe eram tão caros. Certamente sentiu o impacto. Tinha certeza que tanto ela, quanto sua história e sua vida teriam a partir daquele instante, que caber na mala que levava. Não é fácil, tampouco agradável, no entardecer da sua vida, ter que aceitar que ela se reduza a uma mala e voce próprio tenha que se ajustar a uma “caixinha” para que nela seja depositada toda sua história. Sensível e inteligente como era, Martha percebeu que este mundo não lhe pertencia mais. Deixou-se seduzir pelas doenças oportunistas que surgiram e no final, acamada, sem se locomover, a audição também lhe foi tirada de forma sorrateira. Visitas eram raras. Afagos poucos. Solidão sempre presente ainda que cercada de vigilantes cuidadores. O palco da vida onde ela começou a brilhar ainda adolescente, de repente tornou-se escuro e vazio, sem aplausos e sem flores. E assim, Martha, ícone de um século, eternizada para sempre como uma deusa da beleza, saiu de cena como todas as grandes estrelas de cinema. Luzes apagadas, mas aplausos efusivos e memória permanente.
À semelhança do emblemático filme “Alice não mora mais aqui” (1974), de Martin Scorsese e que concedeu a sua protagonista Ellen Burstyn o Oscar de melhor atriz por sua interpretação soberba da representação de inúmeras mulheres dos anos sessenta que foram em busca da obtenção do poder sobre suas decisões e suas vidas, Martha Rocha também decidiu que era chegada a hora de sair de “casa” em direção ao mundo que sempre lhe pertenceu e que lhe esperava: O mundo das estrelas… por isso, não chorem senhores.
Martha Rocha não mora mais aqui.
Está posta em merecido lugar de destaque junto ao panteão das estrelas e é a mais brilhante delas todas.
*Martha Rocha foi a primeira e mais famosa Miss Brasil de todos os tempos. Eleita em 1954, ficou em segundo lugar no Miss Universo daquele ano ,perdendo o título para a norte americana Miriam Stevenson
Texto: Dema de Francisco, Editor da Revista Ponto Jovem